Bola de Ouro da FIFA e a tradução simultânea

Tempo de leitura: 9 minutos

by Ulisses Wehby de Carvalho

BOLA DE OURO

Bola de Ouro

Você já ouviu falar de tradução simultânea? E do prêmio Bola de Ouro da FIFA, às vezes grafado em francês mesmo, Ballon D’or? Muito provavelmente você já deve ter assistido à transmissão ao vivo de alguma premiação na TV com tradução simultânea. Pode ter sido o Oscar, o Grammy, o VMA ou a própria cerimônia de entrega da Bola de Ouro da FIFA, o prêmio concedido ao melhor jogador de futebol do ano. Só para relembrar, na tradução simultânea não dá tempo de abrir dicionário, consultar o Google nem tirar dúvida com um amigo. O trabalho já é complicado por natureza e não precisamos de nenhum problema técnico para complicar as coisas. Mas não é bem assim que acontece. Vamos por partes…

Os desafios

A transmissão de cada uma das cerimônias citadas acima apresenta seus desafios particulares, mas este texto tem o propósito de elucidar algumas noções equivocadas sobre uma delas em particular: a de entrega do prêmio Bola de Ouro da FIFA, transmissão que já tive a oportunidade de traduzir por mais de uma emissora de televisão durante a minha carreira como intérprete de conferência. A última delas foi em 12 de janeiro de 2015, pela ESPN.

O que é “attention split”?

Antes de tratar do tema em si, acho importante explicar resumidamente como funciona o cérebro do intérprete quando está em trabalho de tradução simultânea. Attention split, ou “divisão de atenção”, é o termo que utilizamos para descrever a divisão do foco da atenção entre o idioma de origem (source language) e o de chegada (target language).

Cenário ideal

Tomemos, primeiro, o exemplo mais corriqueiro no Brasil, ou seja, tradução simultânea do inglês para o português. Vamos supor que o orador fala em seu idioma materno, é conhecedor do tema e está acostumado a falar em público. Além disso, discorre sobre tema genérico sem se aprofundar em minúcias técnicas. Logo, a divisão da atenção é mais equilibrada.

Em outras palavras, o intérprete divide seu foco de atenção igualmente: parte na compreensão do original, parte na produção do texto traduzido. É evidente que a divisão de atenção não é estática e varia bastante durante um evento ou uma apresentação.

Complicações

Agora vamos complicar um pouco mais as coisas. Você pode escolher um dos agravantes da lista a seguir isoladamente ou qualquer combinação entre eles. Imaginemos que o orador:

  • não tem o inglês como idioma materno
  • não fala inglês muito bem e tem sotaque carregado
  • não está acostumado a falar em público
  • afasta o microfone da boca com frequência (por nervosismo ou por falta de prática)
  • não domina o tema sobre o qual fala
  • não tem tempo suficiente para apresentar todos os slides
  • está muito nervoso por todas as razões anteriores

O que fazer?

Nesses casos, não há dúvidas de quase todo o foco da atenção está na tentativa de decodificação do discurso de origem. É nessas circunstâncias, portanto, que podem ocorrer eventuais tropeços na língua portuguesa. Esses deslizes podem ser cometidos até mesmo por brasileiros que possuem domínio de seu idioma materno. Não explica, mas justifica.

Há casos, é claro, em que foco pode ser maior na produção tradutória. Se o orador fala pausadamente, sobre um tema que o intérprete domina, não há problemas de áudio de nenhuma ordem etc. Não há razão, nessas situações, para que concentremos tanta atenção na compreensão do texto original e assim podemos nos dedicar a produzir um texto mais bem elaborado em português. É raro, mas acontece. 😉


Tradução Simultânea

Esta playlist reúne todos os vídeos sobre tradução simultânea já publicados no canal Tecla SAP com Ulisses Carvalho no YouTube. Há palestras completas, dicas práticas de tradução, exemplos da vida profissional de intérprete, mercado de trabalho de interpretação de conferência, a tradução simultânea remota (RSI – Remote Simultaneous Interpretation) etc.

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Eventos com mais de dois idiomas

A coisa começa a complicar um pouco quando trabalhamos em eventos com mais de um idioma estrangeiro, como na entrega do prêmio Bola de Ouro da FIFA. Entra em cena a figura do relay (de relay races, provas de revezamento), ou seja, um intérprete faz sua tradução a partir da tradução de um colega.

Orador inglês

Podemos ter, por exemplo, um orador falando em inglês e as cabines de espanhol, alemão, português e francês traduzindo para seus respectivos idiomas. Nesse caso, o intérprete de inglês não está trabalhando. Seu microfone está, portanto, desligado porque não há necessidade de se traduzir inglês para inglês.

Orador de outro idioma

Como aconteceu diversas vezes durante a premiação do Bola de Ouro ontem, tivemos um orador falando alemão. Algumas coisas importantes começam a acontecer nesses casos.

Se, por exemplo, os intérpretes de francês, espanhol e português não entendem alemão, eles vão depender, portanto, da tradução de alemão > inglês, feita pelo intérprete de inglês, que pode ser o único da equipe que entende alemão. A partir da tradução para inglês, os outros três profissionais traduzem para seus respectivos idiomas. No jargão dos intérpretes, as cabines de francês, espanhol e português estão “penduradas” na de inglês.

Mas dá certo?

É importante observar que, nessas situações, se o trabalho fica bom, o mérito é da equipe inteira. Se, por outro lado, der ruído na linha, ou seja, alguém pisar na bola, não é possível sabermos ao certo em que ponto do processo aconteceu o problema. Para se fazer uma análise, é preciso cotejar original, tradução 1 e tradução 2.

Mais complicação

Acha que está ficando complicado? Tenha calma porque ainda tem mais.

Nos eventos em auditório, sem transmissão ao vivo para dezenas de países, todos os intérpretes estão, em geral, em cabines dispostas lado a lado no fundo da sala. Vemos, na maioria das vezes, os colegas trabalhando através de vidros nas laterais das cabines. Qualquer descuido na hora de se apertar um botão para fazermos esse complexo chaveamento de canais de áudio é prontamente corrigido por um gesto de um dos intérpretes ou então pela rápida ação dos técnicos de áudio que monitoram atentamente os equipamentos. Eles são, em realidade, os verdadeiros anjos da guarda dos intérpretes.

A transmissão de TV

Muito bem, imagine a complexidade de se montar uma estrutura assim envolvendo uma equipe de intérpretes enorme em Zurique (não sei precisar para quantos idiomas o evento foi traduzido no próprio auditório) mais uma quantidade ainda maior de intérpretes espalhados pelo mundo afora. Das cabines de tradução simultânea na Suíça, o som era transmitido pela geradora do vídeo e áudio, provavelmente a TV FIFA, e depois para dezenas de emissoras de TV, dentre elas a ESPN no Brasil. Esse áudio era, por sua vez, repassado para os meus fones pelos técnicos de áudio da própria ESPN.

Acho que já está dando para perceber que um atraso de dois segundos na hora de apertar um botão já era o bastante para eu perder um pedaço da pergunta, da resposta ou de um agradecimento. Para quem não assistiu ao Bola de Ouro ontem, inglês, francês, alemão, espanhol e português foram idiomas falados durante a transmissão. A troca entre eles acontecia o tempo todo.

O que aconteceu ontem

Em determinados momentos, algumas dessas situações aconteceram durante a transmissão da cerimônia de entrega do prêmio Bola de Ouro FIFA.

  • Ouvi alemão, idioma que não entendo, ou seja, a tradução para inglês não chegava aos meus ouvidos.
  • Ouvi o áudio da tradução para inglês quando o orador falava alemão, mas junto com o original em alemão.
  • Ouvi o áudio original em inglês, mas junto com a tradução para português feita pelo colega português, provavelmente do auditório em Zurique.
  • Ouvi o áudio da tradução para inglês quando os oradores falavam espanhol, idioma que entendo e do qual traduzo. Aqui cabe uma explicação: ouvir dois idiomas ao mesmo tempo, escolher um e traduzir para um terceiro já é loucura, mas fazer isso quando você entende as três línguas, nesse caso, ouvir inglês e espanhol e traduzir para português, é torturante.

Nem sempre funciona…

Não dá para saber em que ponto desse emaranhando de fios e conexões aconteceram os problemas. Nem vem ao caso investigar agora essas causas. O relato desse texto tem apenas o propósito de esclarecer a telespectadores em geral e a futuros intérpretes o que pode acontecer nos bastidores de uma transmissão ao vivo com tradução simultânea, como a do prêmio Bola de Ouro da FIFA.

A equipe da ESPN

Graças à competência de toda a equipe técnica da ESPN e do excepcional jogo de cintura dos brilhantes Paulo Andrade e Everaldo Marques, que fizeram os comentários, grande parte desses percalços não foi ao ar. Assisti à reprise da transmissão à noite e fiquei surpreso com o excelente resultado final. Sinto muito orgulho de poder fazer parte de um time desses. Parabéns a todos da ESPN!

Se você chegou até o fim desse artigo é porque se interessa pelo assunto e, tenho certeza, também vai gostar das indicações de leitura a seguir. Espero que esse texto tenha de alguma forma aberto seus olhos para alguns aspectos inerentes à tradução simultânea.


Leia também…

Cf. Tradutor e intérprete: como se tornar um profissional da área?

Cf. Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos

Cf. Tradução Simultânea Profissional x Quebra-galho


Speak up! We’re listening…

As informações deste post foram úteis? As explicações e os exemplos foram claros? O conteúdo foi de alguma forma relevante para o seu aprendizado de inglês? A equipe do Tecla SAP quer muito saber o que você tem a dizer com o intuito de oferecer mais conteúdo que seja de fato relevante para você.

Enfim, acreditamos no poder da interação e em aprender uns com os outros. Use, portanto, a seção de comentários a seguir para enviar perguntas, compartilhar sua opinião ou só agradecer. Seus comentários não apenas nos ajudam a melhorar, mas também criam uma comunidade vibrante de entusiastas do estudo da língua inglesa.

Em suma, vamos tornar a aprendizagem de idiomas uma jornada colaborativa. Com certeza, sua voz é mesmo muito importante. Não hesite, deixe um comentário e vamos iniciar a conversa!

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Edson Gomes
Edson Gomes
9 anos atrás

Excepcional. Quando estamos estudando idiomas e lemos esse relato, abre a mente e mostra o quão duro é o trabalho de tradutor. Só tenho muito que elogiar e parabenizar pelo trabalho realizado lá e aqui conosco.

Ulisses Wehby de Carvalho
Reply to  Edson Gomes

Edson, tudo bem?

Obrigado pelas palavras simpáticas. É bom saber que o texto serviu para elucidar muitas dúvidas.

Abraços

Vanessa
Vanessa
9 anos atrás

Ulisses, desculpe… não consegui registrara a dúvida no fórum. Gostaria de saber o significado da expressão “no-go sterling”, que consta na manchete deste jornal britânico: http://sportv.globo.com/site/programas/redacao-sportv/noticia/2015/01/tabloide-brinca-com-dois-gols-de-torres-no-real-da-para-acreditar.html
Obrigada!

Ulisses Wehby de Carvalho
Reply to  Vanessa

Vanessa, tudo bem?

“No-go” é gíria e significa, entre outras coisas, “não funciona”. “Sterling” é a moeda britânica. Logo, a manchete poderia ser traduzida assim: “Não funciona com libra”, uma referência à passagem apagada que el Niño de Oro teve na Inglaterra e, em especial, no Chelsea.

Já resolvi o problema no Fórum Tecla SAP. Das próximas, por favor, poste a sua dúvida lá. Muito obrigado!

Abraços

Amanda
Amanda
9 anos atrás

Ah Ulisses, sem palavras!!
Você não tem ideia da inspiração que você é para mim: sou praticamente uma stalker! rs
Sou apaixonada pela profissão, pelo que ela proporciona e fico emocionada de ver pessoas que, como você, são capazes de fazê-la com tanta desenvoltura, classe e maestria!
Show
xx
🙂

Ulisses Wehby de Carvalho
Reply to  Amanda

Amanda, tudo bem?

Muito obrigado por me “stalkear”… 😉 Agradeço também pelo comentário gentil. Como costumo dizer: é sempre bom saber que tem gente prestando atenção.

Abraços

Kelly
Kelly
9 anos atrás

Oi Ulisses, muito bacana o conteúdo. Atualizado e interessante! Continuarei seguindo!

Ulisses Wehby de Carvalho
Reply to  Kelly

Kelly, como vai?

Que bom que você gostou. Obrigado pelo feedback. Volte mais vezes.

Abraços

Daniel Carvalhal
Daniel Carvalhal
9 anos atrás

Excelente texto, senhor Ulisses. Acompanho seu trabalho desde os tempos de Orkut (e um pouco antes até) e sempre venho por aqui conferir suas dicas.
Estudo o idioma por própria conta desde criança…. e esse estudo culminou no meu gosto pelo idioma e hoje trabalho como intérprete do Batalhão Brasileiro de Força de Paz no Haiti. Temos aqui em Porto Príncipe uma equipe de 10 militares, 7 intérpretes de Inglês e 3 de Francês.
Eu me identifiquei muito com a parte que você fala sobre os sotaques de palestrantes que não tem o Inglês como língua nativa. Entre outros, trabalhamos com interpretações de palestrantes do Haiti, do Sri-Lanka, Mali, Jordânia, Filipinas, Paquistão… entre outros funcionários da ONU de diversas nacionalidades que visitam nossa Base ou vêm palestrar aqui; além de traduções e versões de documentação… mas aí é outra montanha de pesquisas… Temos oportunidade (quase todas as vezes) de estudar o assunto previamente… mas nada pode te preparar para a hora H… heheheh… Está sendo uma ótima experiência e a oportunidade de estudo é excelente. Desculpe a postagem gigante, mas é que me identifiquei com seu texto…. e as situações em que nos encontramos de vez em quando… só quem passa que sabe !!!! Abraço e continue o ótimo trabalho.

Ulisses Wehby de Carvalho

Daniel, tudo bem?

Obrigado pelo relato que, tenho certeza, enriquece o debate de ideias proposto nesse post. Volte sempre!

Receba meus cumprimentos e minha mais profunda admiração pelo trabalho humanitário que vocês desenvolvem no Haiti. O que passei na cabine durante a transmissão não chega nem aos pés, tanto em dificuldade quanto em importância, ao que você e seus colegas vivem no dia a dia. Muito obrigado por vocês nos representarem. Agradeço como intérprete e, principalmente, como cidadão brasileiro.

Abraços

Eddie
Eddie
9 anos atrás

Olá, Daniel! Boa noite! Deixo aqui essa postagem só para mandar um abraço para um amigo de ETFRN, Gugliênio Marconiedson! Que vocês continuem fazendo esse ótimo trabalho para este povo que tanto precisa de uma ajuda humanitária!

Dori Barreiros
Dori Barreiros
9 anos atrás

Parabens Ulisses, se você achar isso pouco, então parabens mais umas 5milhoes de vezes

Ulisses Wehby de Carvalho
Reply to  Dori Barreiros

Dori, tudo bem?

Obrigado pelas palavras super simpáticas. Agradeço 5 milhões de vezes… 😉

Abraços

Raphael Souza de Melo
Raphael Souza de Melo
9 anos atrás

Texto sensacional! Essa tradução deve ter sido daquelas nada corriqueiras né? Como diz o narrador: haja coração hahaha

Ulisses Wehby de Carvalho

Raphael, tudo bem?

Foi bem fora do comum! Obrigado pela visita e pelo comentário.

Abraços

Ulisses Wehby de Carvalho

Emílio, tudo bem?

Obrigado pelo feedback simpático. Valeu! Volte mais vezes.

Abraços

Ulisses Wehby de Carvalho

Karina, tudo bem?

Obrigado pelo comentário. É bom não acostumar muito tempo para não ficar confiante demais… 😉 Boa sorte na profissão.

Abraços

Ulisses Wehby de Carvalho

Willian, tudo bem?

Obrigado pelo elogio. Volte sempre!

Abraços

Ulisses Wehby de Carvalho

João, tudo bem?

Obrigado pelo elogio ao trabalho. Esse foi um pouquinho mais complicado do que o normal… 😉

Abraços

Ulisses Wehby de Carvalho

Vânia, tudo bem?

Que também não deixa de ter seus espinhos, não é? Obrigado pelo comentário. Volte sempre!

Abraços

Ulisses Wehby de Carvalho

Alexandro, tudo bem?

Conheço um dos profissionais que faz a tradução das lutas do UFC e o trabalho dele é excelente. A modalidade empregada nesse caso é a consecutiva. É necessário resumir muito e ser bem rápido na tradução.

Abraços

Sergio
Sergio
9 anos atrás

I imagine how hard must have been to describe the weird Messis’ suit rss

Ulisses Wehby de Carvalho
Reply to  Sergio

Sérgio,

Fashion is not my strong suit… 😉

Take care

Jean Braz
Jean Braz
9 anos atrás

Ual, dá cada vez mais medo dessa profissão que espero chegar um dia.

Que desafiador

Ulisses Wehby de Carvalho
Reply to  Jean Braz

Jean, tudo bem?

Mesmo assim, é bom saber a profundidade do buraco em que a gente vai se meter, não é? 😉

Abraço